O brasileiro que operou Khadafi: Liacyr Ribeiro
Ribeiro em seu consultório em Botafogo, no Rio. “Não cobrei nada de Khadafi, mas ganhei um presente em dólares e francos”
Nos últimos 16 anos, Ribeiro cuidou bem desse segredo. Resolveu revelá-lo a ÉPOCA depois de consultar a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica a respeito das implicações éticas de sua decisão. Diz que recebeu passe livre e contou uma história reveladora. “Não estou fazendo isso para atrair clientes para minha clínica. Contar que operei Khadafi é antipropaganda, porque, afinal, ele não está com boa aparência”, diz. “Minha intenção é contribuir para a compreensão de uma figura histórica em torno da qual há muita especulação e pouca informação.”
Ribeiro opera no Rio de Janeiro, onde mantém dois consultórios (um em Botafogo e outro na Barra da Tijuca), e, algumas vezes por ano, em Nápoles, na Itália. Ele não confirma, mas blogs italianos informam que um de seus clientes é o premiê Silvio Berlusconi.
No episódio da operação de Khadafi foi parar em Trípoli por obra de um homem que assistia com interesse a suas palestras na Argentina e na Europa. Um dia o homem misterioso se apresentou. Disse que se chamava Mohamed Zaid e era ministro da Saúde da Líbia. Zaid o convidou para participar do I Congresso Pan-Arábico de Cirurgia Plástica, que seria realizado na capital da Líbia em 1994. Ribeiro aceitou. Apresentou trabalhos sobre cirurgia plástica de mama, assunto ao qual dedicou toda a carreira. Ao final de uma das palestras, Zaid disse que gostaria que ele visse uma pessoa muito querida. Ribeiro imaginou que veria a mulher do ministro, que talvez estivesse interessada em retocar os seios.
Ribeiro diz que foi conduzido a um carro dirigido pelo próprio Zaid. Passaram pelo palácio destruído pelos americanos em 1986 durante um bombardeio que matou a filha adotiva de Khadafi. Logo depois, Ribeiro começou a ficar apreensivo. O carro serpenteou por ruas estreitas antes de passar por vários bloqueios vigiados por soldados armados. O ministro estacionou diante de uma construção. Os dois entraram, e Ribeiro foi colocado numa biblioteca. Só aí o ministro disse:
– Você vai examinar o nosso líder.
O cirurgião começou a entender o tamanho da encrenca em que se metera – até então, involuntariamente. “Só percebi que aquilo era o bunker do Khadafi quando fui colocado sozinho com ele embaixo de uma tenda, montada dentro de casa. Apesar da penumbra, Ribeiro reconheceu a figura do ditador, que vestia uma túnica longa. O ministro e o médico particular – um paquistanês que morava na biblioteca – não acompanharam a consulta. Ribeiro ouviu a porta bater atrás de si, enquanto Khadafi se aproximava. No primeiro contato, o ditador foi gentil e educado. “Ele apertou a minha mão e, num inglês impecável, aprendido quando estudou estratégia militar na Inglaterra, explicou o que queria”, diz. “Não me deu medo.”
A primeira coisa que o ditador fez foi tentar justificar por que precisava de uma cirurgia de rejuvenescimento. “Ele disse que estava no poder havia muitos anos e não queria que os jovens o vissem como um velho.” Khadafi havia lido sobre várias técnicas. Foi logo dizendo o que queria e o que não queria. Ribeiro indicou ao ditador um lifting facial completo, operação para erguer a pele ou a musculatura do rosto com o objetivo de fazer a pessoa parecer mais jovem. “Queria deixá-lo com o rosto bem esticadinho, mas ele não aceitou”, diz Ribeiro. “Pediu uma intervenção natural que não deixasse vestígios, como uma cicatriz atrás da orelha.” Ribeiro diz ter explicado ao ditador que, sem o lifting facial, o resultado da cirurgia poderia ficar aquém do desejado. Não conseguiu convencê-lo a aceitar o procedimento mais radical. “Apesar de educado e inteligente, Khadafi me pareceu introvertido, tímido, frio”, afirma. “Quando eu fazia uma pergunta, ele não respondia de imediato. Cada palavra parecia calculada.” Ao final da conversa, Khadafi irrompeu:
– O.k. Vamos fazer a cirurgia hoje.
Sem acreditar no que ouvia, Ribeiro gaguejou. Disse que não seria possível, que precisava de material específico, assistentes, anestesistas... arriscou qualquer argumento capaz de tirá-lo dali (em segurança) o mais rápido possível. Com a intervenção do médico particular de Khadafi e do ministro da Saúde, chegou-se a um acordo. A cirurgia foi combinada para o ano seguinte. No primeiro encontro, Ribeiro faria apenas um pequeno procedimento. Com anestesia local, extrairia gordura da barriga do ditador e usaria esse material para tentar preencher e amenizar os sulcos profundos provocados pela flacidez das maçãs do rosto. Sem alternativa, Ribeiro aceitou. Mas sofreu para conseguir encontrar e extrair gordura na barriga do ditador. “Khadafi era saradaço, se exercitava muito. Tinha uma academia completa dentro do bunker e uma piscina de 100 metros.”
No mesmo lugar, a família do ditador dispunha também de um gabinete odontológico, comandado por uma dentista búlgara. Era equipado com o que existia de mais moderno no mundo. Havia, ainda, duas salas de cirurgia completas, com equipamentos de UTI. Em 1995, Ribeiro voltou a Trípoli com o colega Fabio Nacach, especialista em implante capilar.
Ficou combinado que, além de tentar frear o avanço da calvície, Ribeiro melhoraria o aspecto das pálpebras, amenizaria os sulcos ao lado das maçãs do rosto e disfarçaria uma cicatriz localizada no lado direito da testa. O ditador não contou ao médico o que teria provocado a cicatriz, mas Ribeiro teve a impressão de que eram vestígios de uma facada.
1. Khadafi e Ribeiro em 1994, quando se conheceram em Trípoli. 2. Ribeiro nas ruínas romanas de Sabrath, a 70 quilômetros de Trípoli. 3. O brasileiro na biblioteca em que foi colocado, dentro do bunker de Khadafi. Ele não se lembra do nome do paquistanês (à esq. na foto), que era o médico particular de Khadafi. O ministro da Saúde, Mohamed Zaid (à dir. na foto), apresentou Ribeiro a Khadafi
– Este lugar, sem mulheres e sem bebida, deve ser um sacrifício para você. Pode ir embora.
Quando finalmente entrou no carro para começar a viagem de volta ao Brasil, Ribeiro tomou consciência do risco que corria por ser o autor de uma obra que precisava ser esquecida. “Pensei: agora estou morto. Este carro vai explodir antes de chegar à fronteira com a Tunísia.” Nessa conjuntura, Ribeiro diz que preferiu não cobrar nada. “Ele era, ao mesmo tempo, um estadista e um ditador. Achei melhor não dizer nada sobre dinheiro.” Pode-se dizer que o “estadista” – responsável por uma lista vergonhosa de atrocidades em 40 anos de poder e que hoje lança bombas contra sua própria população – indenizou bem o brasileiro pelo susto. Na despedida, Ribeiro ganhou um presentinho do ministro da Saúde. Um envelope recheado de dólares e francos. O médico não revela o valor, mas diz que ganhou muito mais do que cobraria pelo mesmo tratamento no Brasil. Há cinco anos, a equipe de Khadafi pediu que Ribeiro voltasse a Trípoli para um novo procedimento. Alegando doença na família, Ribeiro recusou. “Acho que ele se ofendeu.” Nunca mais foi procurado.
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